Como banqueiro especializado em economia e finanças, com doutorado na área, vejo com preocupação o movimento de equiparar as fintechs aos bancos em capital mínimo, carga tributária e complexidade regulatória. Exigir que um novo entrante imobilize acima de R$ 5 milhões antes mesmo de testar um MVP — e só então, depois de autorizado como Instituição de Pagamento, poder validar produto e mercado — não é prudência: é paralisia travestida de segurança.
O erro de princípio
A boa regulação é proporcional ao risco. “Mesmo risco, mesma regra” é um princípio sensato; “mesma regra, riscos diferentes” é burocracia. Fintechs que oferecem um serviço específico, com contas segregadas e escopo limitado, não carregam o mesmo risco sistêmico de um banco universal com alavancagem, transformação de prazos e risco de crédito na veia. Tratar desiguais como iguais produz duas distorções: mata a concorrência de base (barreiras de entrada) e preserva uma ineficiência incumbente (custos altos repassados ao usuário).
O custo de capital como barreira de entrada
Capital mínimo elevado antes do produto existir desfigura o incentivo à descoberta. Em economia, inovação é um “real option”: você investe pouco, aprende rápido e decide escalar se o sinal de mercado for bom. Quando o regulador exige “tudo de uma vez” — capital, equipe, compliance de grande porte — transforma a opção em obrigação. Resultado: menos experimentos, menos produtos, menos inclusão financeira. Só quem já é grande entra. É a antítese da competição schumpeteriana que derruba preços e melhora serviços.
Competição estática vs. eficiência dinâmica
Do ponto de vista de bem-estar, o ganho social da inovação (eficiência dinâmica) costuma superar o ganho de controle de custos no curto prazo (eficiência estática). Ao copiar a carga regulatória dos bancos para fintechs, preserva-se o status quo: agências sendo desmontadas, quadros sendo reduzidos, spreads resistentes — e pouca pressão competitiva para mudar isso. Sem entrantes desafiando tarifas, prazos e experiência do usuário, o sistema financeiro fica confortável. Quem perde é o consumidor.
A falsa simetria tributária
Equalizar carga tributária e obrigações acessórias sem reconhecer que fintechs não contam com as mesmas fontes de receita, escala e privilégios (acesso a certas linhas, economias de escopo, rede de agências já amortizadas) é criar uma simetria apenas no custo, não na capacidade de suportá-lo. É uma “competição” em pista inclinada: os incumbentes correm ladeira abaixo; os novos, ladeira acima.
Risco, sim. Escadinha regulatória, também.
Segurança financeira não é negociável. Mas ela pode — e deve — conviver com uma escadinha regulatória clara:
• Licenças por fases (prova de conceito → piloto com limites → licença plena), com capital progressivo atrelado a volume e complexidade.
• Tetos de exposição e salvaguardas (contas segregadas, custódia em terceiros, auditorias independentes) que reduzam o impacto potencial sem sufocar o começo.
• Sandbox permanente: ambiente de teste com métricas de risco, gatilhos de intervenção e prazos definidos — não como exceção exótica, mas como instrumento contínuo de política pública pró-inovação.
• Regulação por atividade (o que se faz) em vez de regulação por rótulo (o que se é). Pagamentos, crédito, investimento e câmbio têm perfis de risco distintos; as exigências devem refletir isso.
O custo Brasil regulatório
Ao impor capital elevado pré-MVP e compliance “de banco” para iniciativas ainda incipientes, reforçamos o pior tipo de custo Brasil: aquele que não entrega produtividade, apenas atrito. A retórica da “estabilidade a qualquer preço” esconde um preço altíssimo: menor contestabilidade do mercado, menor difusão de tecnologia e atraso na adoção de modelos mais eficientes — justamente num país que criou um fenômeno como o Pix e que poderia estar liderando a próxima onda (embedded finance, open finance de verdade, identidade digital transacional).
Quem ganha com o travamento?
Não é o cidadão. A evidência internacional mostra que mercados mais abertos, com proporcionalidade regulatória e vias rápidas para teste, pressionam tarifas para baixo e ampliam acesso. Ao contrário, quando se erguem barreiras artificiais, o que prospera é captura regulatória: incumbentes definem o desenho do jogo que jogam, e o árbitro entra em campo para marcar impedimento no atacante que ainda está no aquecimento.
Uma agenda propositiva
1. Capital escalonado por faixas de volume transacionado e risco operacional comprovado.
2. Autorização em ondas: começar com escopo restrito e clientes limitados, ampliando conforme métricas de segurança e atendimento.
3. Supervisão responsiva: mais dados em tempo real, menos papel morto; mais telemetry, menos burocracia.
4. Tributação coerente com a etapa do ciclo de vida da empresa (startups não são bancos universais).
5. Proteção ao usuário por desenho: transparência tarifária, segregação de recursos, SLAs auditáveis — obrigações que realmente protegem, não apenas carimbam formulários.
Conclusão
O papel do regulador não é blindar modelos de ontem, mas garantir que a inovação de hoje não vire o risco sistêmico de amanhã. Isso exige técnica, humildade e coragem institucional para abandonar o “copiar e colar” e adotar proporcionalidade real. Exigir milhões imobilizados antes de um MVP não produz estabilidade; produz escassez de ideias. E um sistema financeiro que teme a novidade não é estável — é estagnado.